SINAIS DOS TEMPOS – Por José Fernando Magalhães (3)

 

 

Dança de Olhares

 

Cada gesto ocular é uma sílaba de um idioma sem voz. Vivemos numa constante dança de olhares. Aprender esta linguagem silenciosa é fundamental para navegar no mundo social, mas é também uma porta de entrada para uma compreensão mais profunda da condição humana.

Não denuncia uma essência imóvel, antes, traça em movimento a cartografia das nossas emoções, intenções e relações. É um livro sempre aberto, mas escrito numa linguagem que requer sensibilidade, experiência e, acima de tudo, humanidade para ser verdadeiramente compreendida.

Nesta era de comunicação digital, onde tantas interacções acontecem mediadas por ecrãs, talvez seja ainda mais crucial reconhecer e valorizar esta forma primitiva e profunda de comunicação. Porque somos seres que se reconhecem no olhar do outro, e é através desse reconhecimento mútuo que construímos a nossa humanidade partilhada.

Mais do que um gesto, o olhar condensa intenções; revela, oculta e regula o jogo social.

Sabe-se, por exemplo, que pupilas dilatadas podem trair interesse. Que um olhar fixo, sem piscar, tanto pode sugerir desafio como tentativa de controlo. E ainda, que em certas circunstâncias, encarar significa respeito, enquanto noutras pode ser uma ofensa.

A comunicação humana transcende as palavras. Entre todos os códigos silenciosos que permeiam as nossas interacções, o olhar ocupa um lugar singular, quase místico, na arquitectura das relações sociais. Ele é, simultaneamente, revelação e ocultação, verdade e estratégia, intimidade e distanciamento. Compreender a sua linguagem é decifrar um dos mais complexos sistemas de comunicação da experiência humana.

 

O modo como se observa possui uma gramática própria, tão sofisticada quanto qualquer idioma falado. Um simples encontro de olhos pode comunicar desejo, medo, desafio, submissão, cumplicidade ou indiferença; mais do que parágrafos inteiros. A duração do contacto visual, a intensidade do olhar e a sua direcção, carregam significados específicos. Um olhar sustentado tanto pode ser interpretado como interesse genuíno quanto como ameaça intimidante, dependendo do contexto e da relação entre os interlocutores.

Esta linguagem silenciosa opera através de códigos culturalmente aprendidos, mas também através de impulsos aparentemente universais. O evitar de olhares pode sinalizar culpa ou timidez; o olhar fixo pode transmitir autoridade ou agressão; o olhar fugidio pode revelar insegurança ou desinteresse. Contudo, a mesma expressão ocular pode ter interpretações radicalmente diferentes consoante o contexto social e cultural em que se insere.

 

No jogo social, funciona como uma máscara transparente, paradoxalmente reveladora e dissimuladora. Aprendemos desde cedo a modular o nosso olhar, a baixar os olhos perante a autoridade, a sustentar o contacto visual para demonstrar confiança, a desviar o olhar para sinalizar desconforto. Esta capacidade de controlar conscientemente a nossa expressão ocular transforma-nos em actores no grande teatro da vida social.

Porém, existe algo no olhar que resiste ao controlo total. Por mais que tentemos mascarar as nossas verdadeiras intenções, há sempre sinais que escapam à vontade. Micro expressões, hesitações no contacto, variações involuntárias, como a dilatação involuntária das pupilas ou um quase imperceptível tremor nos olhos. Esses sinais, raramente inequívocos, fornecem pistas que o observador atento saberá ler. É esta tensão entre o controlável e o incontrolável que torna o olhar tão fascinante e revelador.

 

Não comunica apenas o presente, sugere o que poderá vir a ser o futuro. Observamos os olhos de alguém para tentar decifrar as suas próximas acções e as suas verdadeiras motivações; leitura sempre incompleta, mas muitas vezes útil. Um olhar calculista pode revelar estratégias ocultas. Um olhar compadecido pode anunciar gestos de bondade. Uma maneira de ver inquieta pode sinalizar indecisão ou conflito interno.

Esta capacidade quase premonitória do olhar explica parcialmente o seu poder no contexto social. Quem domina a arte de ler e de controlar olhares, possui uma vantagem considerável nas interacções humanas. Políticos, vendedores e sedutores compreendem intuitivamente que o controlo do olhar é uma forma de controlo social.

 

De forma contraditória, esse mesmo gesto visual que pode ser usado como instrumento de poder é também o nosso ponto de maior vulnerabilidade. Quando olhamos verdadeiramente para alguém, sem máscaras ou estratégias, revelamos o íntimo que nos sustenta em silêncio. É nestes momentos de encontro autêntico que o olhar revela não só emoções passageiras, mas também traços profundos da personalidade, como a generosidade ou o egoísmo, a coragem ou a covardia, a sabedoria ou a ingenuidade. Pense-se no silêncio de um tribunal, quando juiz e réu se olham, ou no instante em que uma criança encara a mãe depois de uma travessura. Nesses momentos, o olhar pesa mais do que qualquer palavra.

Esta transparência involuntária explica a razão de tantas pessoas terem dificuldade em manter o contacto visual prolongado. Olhar nos olhos de outra pessoa é um acto de coragem, porque implica aceitar ser visto, ser conhecido, ser potencialmente julgado. É aceitar que o outro descubra verdades que em nós sempre permaneceram ocultas.

 

O reconhecimento do olhar como linguagem poderosa traz consigo uma responsabilidade ética. Como usamos este poder? Para unir ou para condicionar? Para compreender ou para julgar? Para incluir ou para omitir?

O olhar pode ser um instrumento de dominação; o que desumaniza, que humilha, e que torna invisível. Mas também pode ser um instrumento de libertação; o  que reconhece, que dignifica, que humaniza. A diferença reside na intenção e na consciência de quem olha.

Olhar é poder e oferece responsabilidade. Quando a nossa atenção encontra a do outro, podemos escolher entre reduzir ou aumentar a sua humanidade. Olhar pode ferir mas também pode curar. Restituir ao olhar a sua dignidade implica uma pequena ética do quotidiano. Aprender a ver para afirmar, em vez de ver para apagar. Por fim, talvez o essencial não seja decifrar o olhar alheio, mas sim a bravura de expor o nosso. A entrega silenciosa de quem aceita ser visto.

1 Comment

  1. “Cada gesto ocular é uma sílaba de um idioma sem voz”
    “A entrega silenciosa de quem aceita ser visto.”
    Dois parágrafos, um inicial e também introdutório a uma leitura auto-analitica, o outro final, em jeito de desafio/procura de um interlocutor que reflita o seu próprio olhar.
    Marcante forma de iniciar e finalizar um excelente artigo sobre a multiplicidade linguística que um olhar pode conter, fazendo a necessária e importante ressalva, á variada, e mais que provável diferenciação na codificação pelos seus interlocutores.
    A reler, o que alguns meus conhecidos também irão fazer!
    Zé Marafona
    Abraço Zé

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